Você se lembra da primeira vez que se sentou em uma sala de cinema? A sala escurecendo e o perfume da pipoca pairando no ar. As pessoas falantes, sorridentes e cheias de antecipação. Tudo ficando escuro. Você se recorda de ter sentido medo? A escuridão logo quebrada por um
zumbido e a tela se acendendo. O som inundando a sala e a mágica acontecendo…
Minha família por parte de pai é toda de músicos: meu bisavô saiu da Itália e quando veio se estabelecer na pequena Tambaú no pós-guerra, jamais pensaria que um dia seria homenageado com uma rua com seu nome, a rua Maestro Vittório Barbin. Minha mãe me conta que ele
passava os dias solfejando, meu pai, que ele tinha o ouvido absoluto, e minha tia, que era ele quem tocava o piano no cinema nos filmes mudos, fato importante relacionado ao tema desse artigo.
Eu não herdei esse dom maravilhoso para a música, minha parte saiu em uma facilidade de agregar palavras umas as outras e criar sentido com elas. E depois de muito escrever, acabei tornando-me roteirista de cinema.
Confesso que é um trabalho árduo e nem um pouco glamoroso, mas que é a pedra fundamental de qualquer produção cinematográfica. E é minha mais profunda paixão. Aliás, duas profundas paixões: tudo que se refere ao cinema e à música me fascina.
Quando nos sentamos em uma sala de projeção hoje em dia, com um desenho de sonorização dolby stereo digital e imagem digital, temos por garantido uma qualidade ímpar que acredito deixaria meu bisavô e seu piano
embasbacados!
Desde os primórdios do teatro até nossos rituais mais ancestrais, a música é parte integrante dos mesmos. A narrativa dramática quase sempre se apresentava com ditirambos, coros cantados e música.
O cinema na sua origem não era propriamente “mudo”. A música estava lá, mas era meramente ilustrativa. Ainda não havia a possibilidade nem técnica,nem artística de que a música na criação do cinema se tornasse o que conhecemos hoje.
O início da idéia de que a música pudesse também servir como narrativo é puramente um fenômeno romântico, que se inicia na segunda metade do século XIX com inúmeros compositores da época e tem seu marco na “Sinfonia Fantástica” do francês Hector Berlioz (1803-1869). É aí, com essa sinfonia baseada em um sonho que ele teve, que a música associa-se com as imagens servindo diretamente a uma narrativa dramática.
Logicamente que essa noção de divisão da música absoluta e música programática já está hoje em dia completamente diluída, pois sabe-se que toda música causa efeito nos sentidos de maneira similar. Porém, é essencial para encontrarmos o momento em que a narrativa dramática passa a ter a música como parte quase inseparável em sua expressão, na função de se “contar uma história”.
Inicia-se, portanto, uma enorme tradição em unir a literatura à música que desemboca em ballets, óperas, sinfonias baseados em uma idéia extra-musical em sua estrutura.
Liszt, Mahler, Tchaikovsky, Strauss dedicaram-se nesse momento ao Poema Sinfônico que é o pai das trilhas sonoras do cinema atual. E então, aquele que fundiu como ninguém idéias musicais com idéias extra-musicais, o alemão Richard Wagner. Sua obra influencia até hoje os compositores por sua estrutura baseada nos leitmotivs, ou motivo condutor, onde um tema musical determina uma ação ou apresenta um personagem. Pense no Superman. É quase impossível que a imagem venha separada do tema excepcional criado por John Williams. Ou pense em Darth Vader caminhando pelos corredores da Estrela da Morte! De novo, tente abaixar o volume de sua memória! Impossível!
No início do século XX, com o advento do dodecafonismo, no entanto, a tradição sinfônica unida á associação de imagens despenca em popularidade. O sistema harmônico moderno, baseado no atonalismo, cria uma nova realidade na imaginação musical. Nesse momento, vários
compositores sinfônicos das décadas de 10 e 20 ficaram sem saber que música produzir. Então… o som foi criado no cinema! Com a possibilidade de se imprimir o som na própria película, a qualidade técnica da utilização do som ganhou força e a sincronicidade entre som e imagem
aconteceu, sem falhas e sem chiados pela primeira vez.
O som no cinema tornou-se promissor. E foi nas telas que esses compositores de sinfonias e poemas sinfônicos tradicionais se reinventaram. Mas havia ainda longo
caminho a percorrer, pois qual seria o papel do som no cinema? Ruídos, apenas elemento decorativo? Qual seria seu papel estético?
Nos anos 30, Chaplin nos Estados Unidos e Eisenstein na Europa percebem que a música deveria fazer mais que ilustrar imagens, que teria o papel de auxiliar a conduzir o espectador através da narrativa criando inclusive o clima fundamental para entendimento dessa mesma imagem.
Eisenstein tem como pilar de sua obra a montagem dramática e, portanto, criou um sistema em que a música deveria se equivaler à montagem em importância. Mas para que a força da música se equivalesse ao peso da imagem, toda uma orquestra teria que ser utilizada, uma trilha sonora altamente refinada e específica, um compositor em parceria com a própria criação
cinematográfica. Para nós hoje parece óbvio. Mas o mais maravilhoso foi que nesse instante a música torna-se crucial na nova narrativa cinematográfica, muito próxima da que vemos ainda hoje. Porém os diálogos aconteceram.
A narrativa torna-se propriedade da interpretação do ator e a música retorna a seu papel anterior de pura ilustração. Mas não por muito tempo.
Em 1939, Fantasia, o desenho animado de Walt Disney mostra a capacidade da música em conduzir a ação dos personagens, em ser a música a própria narrativa!
Ninguém da indústria do cinema ficou alheio ao poder de Fantasia: ao cinema ficou claro que a música estava ali para ficar. O cinema precisava da música para criar climas, construir o ambiente, conduzir o espectador para onde fosse necessário.
As décadas subseqüentes foram vertiginosas tanto em questões estéticas, como a adequação da trilha ao gênero do filme, como técnicas, com o advento do sistema estereofônico.
Nos anos 40 a base era a música sinfônica européia e alguns compositores são responsáveis pelo que podemos chamar de trilha sonora cinematográfica como conhecemos hoje. Dentre eles o mais conhecido é Max Steiner, que criou… E o Vento Levou, Jezebel e Casablanca. Ao final dessa década, a música se torna mais especializada para cada gênero cinematográfico e na
década de 50 essa especificação se torna tanta que chegamos ao cinema de autor. É aí que a necessidade do casamento da música com a imagem se tão fundamental que os compositores transformam-se rapidamente em parceiros essenciais do fazer autoral cinematográfico.
Temos Nino Rotta com Fellini, Walton com Olivier, John Williams com Spielberg e George Lucas.
Mas ainda faltava o fator pop introduzido nos anos 60 e fortemente explorado nos anos 70 e 80, com canções populares fazendo às vezes da parte orquestrada para se construir o clima.
Hoje a trilha sonora tem momentos orquestrados que conduzem à narrativa, mas também canções emblemáticas que marcam nossas vidas conduzem nossos sonhos e preenchem nosso imaginário. Nossas lembranças que transbordam ao ouvirmos aquele tema inesquecível quando a sintonizamos no rádio sem querer. Imagens e sons que fazem parte do que somos como seres e como sociedade, as transformações que a arte pode e deve fazer em nós. Indico o site www.menmocine.com.br, o super artigo do Filipe Salles que me ensinou demais sobre trilhas sonoras e os artigos escritos pelo Mauro Giorgetti para o mesmo site. Vale à pena!
Você afinal se lembrou do primeiro filme que assistiu?
Eu sim. Quando a tela se acendeu foi a imagem de uma menina bem branquinha, de cabelos cor de ébano, perdida na floresta encontrando uma casa com sete caminhas e sete pratinhos, e essa maravilha jamais me abandonou.
Duvido que você não saiba de que filme estou falando, mas aqui vai uma dica da trilha sonora que não deixará nenhuma dúvida: “Eu vou, eu vou, pra casa agora eu vou, parará, tim-bum, parará tim-bum, eu vou, eu vou, eu vou!” Lembrou?
www.quandoaprimaverachegar.com.br
REVISTA MÚSICO! N.3 - NOVEMBRO/09 - PÁGINAS 26 E 27
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