quarta-feira, 17 de agosto de 2011

“Boa Parte de Mim Vai Embora”

Vanguart 
Vanguart e o faroeste do amor

“Boa Parte de Mim Vai Embora” é um marco na história da Vanguart, banda formada em 2004 em Cuiabá, Mato Grosso. Até então, o quinteto enfrentava tiroteios entre a inspiração em Beatles e Bob Dylan e versos em português e inglês. Três anos depois do bem-sucedido álbum de estreia, “Vanguart”, oxigenado pela mudança para São Paulo, por novas influências – cantores como Dorival Caymmi, Roberto Carlos e Elizeth Cardoso e poetas como Walt Whitman –, e moída e remoída por encontros e desencontros amorosos, o grupo nunca soou tão coeso, tão western. À parte "Mi Vida Eres Tu", com refrão em perfeito espanhol, o álbum todo é cantado em português. Escancaradamente inspirado na mais confessional das obras de Dylan, “Blood on the Tracks”, “Boa Parte de Mim Vai Embora” é romântico do primeiro ao último acorde.

Tudo gira em torno da inquietação: o amor pode ir e voltar quantas vezes? Até onde podemos ir entre o orgulho do rompimento e a redenção da volta? Não se fala aqui na paixão ou na descoberta do amor, mas no confronto com a perda, com a sarjeta e com a cara na porta – e com a desbragada vontade de bater à porta fechada, sem esperança, mas também sem medo. O tema da ausência é conjurado já na capa: em duotone, quatro mulheres à frente de uma casa antiga – os homens, enxotados ou perdidos, devem estar do lado de fora, com cara de cachorro, implorando por voltar (as mulheres são amigas da banda: as músicas Fernanda Kostchak e Cida Moreira, a atriz Daniela Dams e a apresentadora Rafaela Tomasi).

Mas Vanguart espanta a maldição do segundo álbum encarando com calma seus demônios. Se há momentos de placidez folk, há sobretudo uma lucidez agridoce em esgarçar as feridas; o álbum soaria trágico não fosse o sofisticado iê-iê-iê que embala essas treze melancólicas canções. Ao mesmo tempo em que apresenta novas ideias para as alternâncias de dinâmica que são a marca da banda, o quinteto aprofunda a peculiar maneira como exerce o contraste tramado entre a pulsação forte e veloz do instrumental e as notas alongadas da melodia-guia. Atente-se, aliás, à maturidade dos vocais do frontman Helio Flanders, cujo registro passeia do confortável ambiente dylanesco às paisagens melodramáticas de grandes crooners da torch song como Cida Moreira, Cauby Peixoto e Rufus Wainright, impondo-o como um dos cantores de frente da nossa música pop contemporânea.

O álbum foi registrado no esquema ao vivo em somente três dias no Estúdio Inca, em Cuiabá. Juntou-se ao quinteto a violinista e arranjadora Fernanda Kostchak, responsável por colorir o som do grupo com atmosfera ora clássica ora cigana. O rock rural brasileiro, tradicionalmente escapista, antiurbano e ingênuo, foi reinventado com romantismo sujo na cidade, e por uma banda matogrossense: a novidade não é pequena. Felizmente, apesar de todos os desenganos, salva-se um álbum conceitual corajoso ao enfrentar dissabores com coração limpo e suave. No faroeste amoroso do Vanguart, os letreiros The End fazem legenda ao herói que vai embora a galope, sangrando, mas ainda vivo – depressa, depressa e devagar.

Ronaldo Bressane

“Boa Parte de Mim Vai Embora” faixa a faixa

O álbum inicia aparentemente manso – na real, carrega uma leve ousadia. "Mi vida eres tu", parceria do frontman Helio Flanders com o baixista Reginaldo Lincoln, abre direta sobre um rock suave, despretensioso, levado pela tecladeira jovem-guarda de Luiz Lazzarotto e pelo fraseado limpo da guitarra de David Dafré. Quando Flanders pede por uma "louca/ ainda mais louca que eu", não há como não lembrar de... sim, Cauby Peixoto, herói da torch song nacional. Como se derramar a voz dramaticamente já não bastasse, o refrão é atacado em espanhol, torcendo a balada numa verdadeira guaranya paraguayensis: "Ahora que mi vida/ quieres tu vida/ y ya no estás./ Soy mi propio corazón/ las calles mi vieja ilusión/ el amor aún es mi canción/ la canción de una mujer/ que yo espero en un rincón/ mi torpe irrupción/ eso es por vos, digame quién sos vos".

Em tom menor, "Se tiver que ser na bala, vai" acelera o andamento na direção de uma planície desolada do faroeste. A dor pela ausência da amada, que havia na primeira canção, aqui ganha feições de duelo com um terceiro elemento: "Não te opõe ao curso de mim/ eu vou te amar como um raio/ que se opôs ao curso do céu/ e sobre esse teu homem/ se tiver que ser na bala vai/ se tiver que ser sangrando vai". As palhetadas à surf music na guitarra fecham o clima de western.

Na balada "Desmentindo a despedida", Flanders observa outro ângulo da relação de amor arruinada: o retorno à cena do crime. O poeta reencontra a face amada e não se revê: "Eu voltei/pra dizer que não sou o mesmo/ que eu ouvi as tuas ondas no meu sono/e esse mar não foi mais que a nossa cama/ sem você, amanheceu".

"Nessa cidade", outra parceria Flanders/Lincoln, traz duas novidades. Além do trompete de Flanders, uma peça importante à sonoridade do álbum: o violino folk de Fernanda Kostchak. Conduzida com destreza pelo baterista Douglas Godoy, a canção alterna momentos suaves e épicos – a cama de piano, trompete e violino fazendo lembrar a banda escocesa Waterboys. Outro lamento do amor que se foi, nesta canção comparece o verso que intitula o álbum: "Boa parte de mim vai embora/ a sua parte que hoje sou eu".

Em clima robertocarliano de ajuste de contas, "Engole" é mais uma torch song em que o poeta lamenta seu abandono e busca forças para encarar o que perdeu: "Eu te levei até a praia/ eu me desfiz da minha esposa/ eu joguei fora o meu dinheiro/ fechei a porta pra um amigo/ eu só sonhei meu desengano/ eu desenhei as tuas pupilas/ e arde mais que brasa em pele quente/ você olhando pra mim".

A dor de cotovelo em "A patinha da garça", parceria de Flanders com Julio Nhanhá, se colore de imagens sertanejas: "Mas nem é isso que incomoda/ o foda é ver você cair na patinha de outra garça/ depois de tudo que aspirou sumir", lembrando as origens matogrossenses da Vanguart.

Uma das mais poderosas canções do álbum, "Eu vou lá" deixa entrever, no riff inicial de Dafré, outras raízes do rock rural da banda: o blues elétrico do sul norte-americano, expresso por grupos como Allman Brothers. A poesia sugere que Flanders, leitor atento de Dylan, foi beber em uma grande influência do bardo folk: Walt Whitman. Daí a amplidão de versos como "Eu sou filho dessa chuva/ desse calor dos teus olhos/ Seja eu a tua casa/ Seja eu o teu mistério/ teu riso/ e eu vou lá/ se me faltam caminhos pra ficar".

"Onde você parou", composição de Reginaldo, faz par com a canção seguinte, "...das lágrimas", ambas cantadas com competência pelo baixista. Se a primeira entrega o desencontro ("Parei onde você parou pra me esperar/ até quando você notou que não ia dar em nada"), a segunda traz, pela primeira vez, alguma esperança a esses homens tão desiludidos, tão castigados por essas mulheres que se foram: "Ela vai voltar pra te buscar/ de manhã lá, na sala de estar/ eu vou te encontrar/ no fundo eu vou gostar/ quando você disser dos homens com quem deitou/ das armas que já usou/ te amo sem nos ver a dor".

Pontuado pelo violino de Fernanda, a bela "Amigo", outra parceria Flanders/Lincoln, traz uma terceira mirada para o fim do amor: "Para onde a gente vai daqui?", pergunta o poeta, com uma angústia estranhamente plácida. A canção não fala só da morte do amor, mas do amor à morte: "A luz que nasce em mim vem de você/ das faces que eu beijei, das mãos que eu segurei/ das coisas que eu não esquecerei/ quem te vê sorrindo?/ quem te vê chorando?/ quem me vê rasgando as noites/ em casas desconhecidas/ a procurar teu retrato?".

O tema da morte começa lúgubre na oceânica "Morrerão", climática parceria de Flanders com Nhanhá: "Meus pés morrerão ao encostar nos seus/ e esse chão há de ser só teu e meu". Sutilmente, a voz de Flanders, aqui mais leve, vai despedindo-se das imagens da amada, até tranquilizar-se no misterioso e redentor verso final: "Teu mar não morrerá em ti".

Na francamente suicida "O que a gente podia ser", Flanders altera o registro da voz e troca a inspiração em Cauby e Cida Moreira (que aliás comparece na capa do álbum) e apresenta um timbre próximo ao de Rufus Wainright – raramente um rock folk teve atmosfera tão de música de fossa!

Candidata a hit, com "Depressa", a canção que fecha o álbum, a Vanguart acelera perigosamente a pulsação nesses estranhos versos-chiclete: "Você diz pra eu ir depressa/ que logo estará lá/ onde você me leva/nem Deus andará/ põe a faca no chão/ juro que não vou te machucar". Enganosamente ambientado num suave iê-iê-iê, o faroeste dos amantes sugere um desfecho trágico. Mas o poeta pede calma, pede tempo. "Ainda não é hora disso/ .../ Eu vou me despedir/pensando o que eu vivi/ o que eu não vivi/eu to indo ver". Entre corações em chamas e mulheres que vêm e vão, o Vanguart segue ileso.

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